#06 A literatura e o orgulho
Nesta edição: Cassandra Rios, literatura e orgulho LGBTQIAPN+, por Flávia Mantovani. E a Coletiva Indica, dicas de livros para ler com orgulho
A palavra também é nossa: Cassandra Rios, literatura e orgulho LGBTQIAPN+
Por Flávia Mantovani
O orgulho LGBTQIAPN+
Gostamos de literatura e estamos em junho, o mês do orgulho LGBTQIAPN+ e, sim, temos um mês inteirinho para falar de amor e sexualidade, mas também sobre festa e luta. Infelizmente, ainda precisamos de momentos como este para virar a chave da vergonha e celebrar nossos modos de viver. Mas que bom que existe o orgulho como resposta à histórica nomeação de nossas vidas como erradas, desviantes, patológicas, pecaminosas e um bando de adjetivos que buscam nos reduzir e aprisionar. Entretanto, também narramos a nós próprias, e é aqui que a literatura entra. Aliás, você já leu Cassandra Rios? E Caio Fernando Abreu, Amara Moira, Natalia Borges Polesso, Monique Malcher, e por aí vai...? Citei de cabeça, mas uma coisa é certa: é muita gente.
Além do dia 28 de junho, ocupamos o calendário com outros marcos históricos importantes da história LGBTQIAPN+. Sobre essa data, pode-se dizer que relembra a revolta de Stonewall, em 1969, quando o bar no Greenwich Village, em Nova Iorque, foi palco de um motim contra as batidas policiais às pessoas que ali frequentavam. Um espaço de sociabilidade de figuras marginalizadas naquela sociedade, como travestis, lésbicas masculinas, drags, pessoas em situação de rua, negras, pobres, latinas, enfim. Embora tenha se tornado um marco importante devido à hegemonia cultural estadunidense, é referência importante da luta por direitos. Mas não a única, como expõe Renan Quinalha em seu livro Movimento LGBTQI+, uma breve história do século XIX aos nossos dias, no qual o autor nos traz os primórdios do ativismo alemão. Pois é, surgia um movimento homossexual na Alemanha do século XIX, mas foi duramente reprimido com a ascensão do nazismo. Não é coincidência, faz parte de projetos de governo autoritários a repressão às dissidências sexuais e de gênero, pois elas desafiam os modelos de família necessários para a manutenção do poder.
No Brasil, há também uma longa história de perseguição à população LGBTQIAPN+ (que nem sempre teve este nome, que busca incluir a maior diversidade possível) sobretudo durante a ditadura civil-militar – para se aprofundar, basta pesquisar sobre a Operação Tarântula ou a Operação Sapatão. O documentário Não é a primeira vez que lutamos pelo nosso amor é uma boa síntese desse passado indigesto e novamente se vê a força da palavra: o Lampião da Esquina, jornal homossexual brasileiro que circulou entre 1978 e 1981, e o boletim Chanacomchana, produzido pelo GALF (o Grupo de Ação Lésbica-Feminista) demonstram a necessidade de afirmar que a palavra também pode, e deve, ser nossa. E adivinha: nas duas publicações, a literatura é presença constante. No Chanacomchana, que circulou entre 1981 e 1987 e era distribuído pelas lésbicas no Ferro’s Bar, em São Paulo, era muito comum a publicação de poesias de mulheres. A propósito, é importante não esquecer do levante das lésbicas no Ferro’s Bar, em São Paulo, em 19 de agosto de 1983 liderado por Rosely Roth.
silenciadas o corpo, na alma na carne na verve Muito do que nos obrigam a ser é insustentável. Silêncios guardam nosso segredo que nasceu para ser palavra pública: enamoradas.
Ou seja, a relação de pessoas LGBTQIAPN+ com a palavra é íntima e longeva. Para dizer as coisas, negar os estereótipos, recusar, narrar, imaginar mundos outros, construir nossas utopias amorosas e defender o desejo, denunciar as violências. Tem ficção, autoficção, poesia, biografia, enfim, tem para todos os gostos. Evidentemente isso é bastante individual, mas, da minha parte, posso afirmar com tranquilidade que foi lendo livros que elaborei as minhas questões e não me sentia mais tão só.
Literatura, Cassandra Rios e a censura
Cassandra Rios é o pseudônimo de Odette Rios, nascida em 1932, em São Paulo. Filha de pais espanhóis, escritora e lésbica, é frequentemente lembrada por ser “a escritora mais proibida do Brasil”. Cassandra não tergiversou ao escrever sobre sexo e sexualidade, muito pelo contrário: suas personagens vivenciam o amor e as relações, tanto no sentido romântico idealizado como através dos sentidos, principalmente. Sua obra faz jus à fama, passam de 30 seus livros vetados, sobretudo na década de 1970, pelo aparato censório da ditadura civil-militar. O motivo? Conter o incentivo ao “homossexualismo” em publicações que contrariassem a moral e os bons costumes, como se usava dizer. A autora faleceu em 2002 e chegou ao fim da carreira um pouco esquecida e com sua vasta produção apagada.
Foto: Cassandra Rios na revista Realidade, 1970.
Não custa lembrar que censura e proibição de livros têm a cara do nosso tempo, mas não é de hoje que isso é prática no Brasil. Uma longa tradição censória, desde pelo menos o Estado Novo de Vargas (1937-1945), quando já policiava questões relativas à moral e aos costumes, além da censura proveniente de costumes e valores da sociedade brasileira, marcadamente atravessada por uma cultura racista, heteronormativa e cristã desde a colonização.
Para se ter uma ideia, o parecer do Departamento de Censura das Diversões Públicas, o qual, em 1976, veta A volúpia do pecado, aponta que o romance faz “[…] descrições ousadas das relações homossexuais” e decide pela sua “não liberação”, já que o livro apresenta personagens “grotescos” e “[...] patéticos em sua condição [homossexual]”. Devido a descrições do “tribadismo” que “[...] ultrapassam os limites da tolerância”. Tais afirmações são uma constante em diversos pareceres da censura a livros de Cassandra, a autora que mais sofreu vetos da censura.
“uma mensagem negativa sobre todos os aspectos, inclusive porque a autora afirma que o lesbianismo é a verdadeira condição normal da mulher” contrariando “um padrão moral consagrado pela nossa sociedade”
Parecer do livro As traças – Parecer n. 1720, da técnica de censura Ana Kátia Vieira, 29/10/1975.
No entanto, o curioso é que Cassandra Rios escreveu A Volúpia do Pecado aos 16 anos, em 1942, e esse é seu primeiro livro, mas o mais intrigante é a história de sua publicação. A autora conta que o livro foi financiado por seu pai, com o apoio de sua mãe, fazendo com ela um pacto de que sua mãe nunca poderia ler o conteúdo do livro. Impossível saber se Dona Damiana chegou a ler a história de Irez e Lyeth, duas garotas que se apaixonam e vivem o seu desejo, inicialmente estranhando-o, procurando nomeá-lo, até o desfecho em que passam por terapias e tratamentos sugeridos pelo médico de confiança da família de Lyeth, Dr. Fabiano. Ao final do romance, novamente a força da palavra: ao tirar a própria vida, Lyeth sussurra o nome de Irez, a despeito de todos os processos para que esquecesse aquela história.
O livro, que traz uma história carregada de sofrimento e culpa, também é um ato de rebeldia daquela jovem Cassandra, que rompe com a moral familiar para colocar sua escrita no mundo. Cassandra passou a vida escrevendo. Que, neste dia do orgulho, possamos celebrar todos os livros, todas as histórias e todes les autories LGBTQIAPN+.
Escrever o desejo.
Afirmar a vida.
Foto: recorte da revista Realidade, 1970.
Livros mencionados:
As traças, Cassandra Rios. Editora Brasiliense, 2005.
A volúpia do Pecado, Cassandra Rios. 2 Edição. Rio de Janeiro: Record, 1974.
Movimento LGBTI+. Uma breve história do século XIX aos nossos dias, de Renan Quinalha. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2022.
Os pareceres estão no livro de Douglas Attila Marcelino, Subversivos e pornográficos: censura de livros e diversões públicas nos anos 1970. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011.
Documentário:
Não é a primeira vez que lutamos pelo nosso amor. Direção: Luis Carlos de Alencar. Brasil, 2022.
Para conhecer Cassandra Rios:
Como uma edição ficou pequena para conhecer Cassandra Rios e sua extraordinária vida para além de seu rótulo de censurada, deixo aqui algumas recomendações para quem quiser se aprofundar.
Censura: minha luta, meu amor. Editora Gama, 1977, autobiografia de Cassandra Rios.
Mezzamaro, flores e Cassis: o pecado de Cassandra. Editora Pétalas, 2000, autobiografia de Cassandra Rios.
Cassandra Rios ainda resiste. [Entrevista concedida a Mirian Paglia Costa, Maria Adelaide Amaral, Darcy Penteado, Marisa Correia, João Silvério Trevisan e Glauco Matoso]. Jornal Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, ano 1, n. 5, p. 8-10, out. 1978.
A perseguida. [Entrevista concedida a Fernando Luna]. Revista TPM, São Paulo, n. 3, p. 2-11, jul. 2001.
Flávia Mantovani Professora de História na rede pública estadual, mestra em História Social (UEL) na linha de História e Ensino e doutora em História (Unesp). Umas escritas de vez em quando em sua newsletter pessoal Café com Bárbara. Mediadora do Clube de Leituras Proibidas e membra da Coletiva Literária.
Coletiva Indica
Neste mês do orgulho LGBTQIAPN+ cada uma das coletivas indicou um livro. Um mês é pouco para ler tanta dica boa! Confira:
O PARQUE DAS IRMÃS MAGNÍFICAS - Camila Sosa Villada
Eu leio para viver as coisas e as vidas que não sei. E este ótimo livro da Camila Sosa Villada me emocionou e me encantou com sua escrita bonita, uma dose de realismo mágico e o absoluto terror que é viver nessa margem. O Parque das Irmãs Magníficas também enfia na nossa cara a nossa hipocrisia, nossa transfobia, nossa violência contra as travestis.
(O Brasil é o país que mais consome pornografia com pessoas trans e travestis e é também o que mais mata essas pessoas).
E sem a mesma tranquilidade da Tia Mara, a leitura nos mostra que para uma boa parte da sociedade "mudar é mais difícil que morrer".
Indicado por Lud Berdu Elias
ESPELHOS E MIRAGENS - Hanna K.
Os mundos de Ana Paula e de Manu parecem completamente antagônicos, mas suas vidas se entrelaçam de forma inesperada.
Primeiro romance de Hanna K., Espelhos e miragens foi premiado na categoria literatura do 18º Prêmio Cidadania em respeito à diversidade, uma iniciativa é da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, e o prêmio PapoMix na categoria Literatura.
Indicado por Sheila Ozsvath
RIO PEQUENO - floresta
Só indicações babadeiras nesse mês do orgulho LGBTQIAPN+, heim? Apesar de amar Natalia Borges Polesso e Amara Moira, resolvi indicar um livro de poesia. rio pequeno, quarto livro do poeta e tradutor floresta, é um livro de poemas fortes, belos e que falam sobre modos de vida outros, que desarticulam processos hegemônicos de representação e opressão. Os poemas compõem uma espécie de romance de formação, passeando por temas, lugares e questões constitutivas: a casa da infância, a família, os amores, o tempo, as descobertas e redescobertas do corpo e do erotismo.
https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/rio-pequeno/
Indicado por Flávia Mantovani
A COR PÚRPURA - Alice Walker
Um dos mais importantes títulos de toda a história da literatura, inspiração para a aclamada obra cinematográfica homônima dirigida por Steven Spielberg, o romance A cor púrpura retrata a dura vida de Celie, uma mulher negra no sul dos Estados Unidos da primeira metade do século XX. Pobre e praticamente analfabeta, Celie foi abusada, física e psicologicamente, desde a infância pelo padrasto e depois pelo marido.
Um universo delicado, no entanto, é construído a partir das cartas que Celie escreve e das experiências de amizade e amor, sobretudo com a inesquecível Shug Avery. Apesar da dramaticidade de seu enredo, A cor púrpura se mostra extremamente atual e nos faz refletir sobre as relações de amor, ódio e poder, em uma sociedade ainda marcada pelas desigualdades de gêneros, etnias e classes sociais.
Fonte :https://record.com.br/produto/a-cor-purpura-2/
Indicador por Lorraine Fernandes
BOY ERASED - Garrad Conley
Em seu elogiado livro de estreia, Garrard Conley revisita as memórias do doloroso período em que participou de um programa de conversão que prometia “curá-lo” da sua homossexualidade. Garrard ― filho de um pastor da igreja Batista, criado em uma cidadezinha conservadora no sul dos Estados Unidos ― foi convencido pelos próprios pais a apagar uma parte de si. Em uma tentativa desesperada de agradá-los e de não ser expulso do convívio da família, ele quase se destruiu por completo, mas encontrou forças para buscar sua identidade e hoje é ativista contra as terapias de conversão. Tocante e inspiradora, a história de Garrard é um acerto de contas com o passado, um panorama complexo das relações do autor com a família, com a fé e com a comunidade. O livro é o testemunho dos traumas e das consequências de se tentar aniquilar parte essencial de um ser humano.
Indicado por Ana Letícia Brunelli
Próximos Eventos
Mediação de leitura Feira Livro (para crianças)
Com Dindinha Faz Poema
De 09/06 à 07/07, 13:00hs, SESC
Gratuito
@sescribeiraopreto
Projeto Ecoando Vozes Negras
Oficinas: Contação de histórias; oficina afrofuturismo; roda de conversa
Público de 4 a 18 anos
Dias 22/06, 06/07 e 20/07, das 09:00hs às 12:00hs, Centro Cultural da Vila Tecnológica
Gratuito
@pretotecazenaidezen
Festival de Inverno da Degustadora
Dia 27/06, até 07/07às 17:30hs, A Degustadora de Histórias
@adegustadoradehistorias
Roda de história + atividade prática
Livro: Sona: contos africanos desenhados na areia, Rogério Andrade Barbosa
Dia 29/06, às 10:00hs, C.C.Orùnmilá
Gratuito
@c.c.orunmila
Clube de Leitura Leia Mulheres
Livro: Não fossem as sílabas do sábado, Mariana Salomão Carrara
Dia 29/06, às 16:00hs, BSJ
Gratuito
Sala de Leitura Frida K
Livro: Salvar o fogo, Itamar Vieira Junior
Dia 06/07, às 16:00hs, BSJ
Gratuito
Clube de Leituras Proibidas
Livro: Frankenstein, Mary Shelley
Dia 06/07, às 16:00hs, BSJ
@livraria_levante
Clube de Leitura Lendo Luto
Livro: Elegia do irmão, João Anzanello Carrascoza
Dia 13/07, às 16:00hs, BSJ
Gratuito
Clube de Leitura Além do Vestibular
Livro: Alguma Poesia, Carlos Drummond de Andrade
Dia 13/07, às 16:00hs, BSJ
Gratuito
@clubedeleituraalemdovestibular
Oficinas literárias do Instituto do Livro de Ribeirão Preto
De abril a outubro de 2024
Gratuitas
Confira a programação em
@institutodolivrorp
4º Festival Literário de Inverno de Ribeirão Preto (FLIRP): "Diálogos de dentro: literatura, psicologia e arte"
De 03/07 a 06/07, na BSJ
Confira programação em
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